0

NÓS

Matéria no Jornal Diário do Grande ABC

Arte com suor
"Com ou sem apoio, o trabalho continua", garante o capoeirista Fábio Mendonça, que prefere ser chamado de Preto. Ele se refere ao projeto Casa de Cultura, que oferece treinos de capoeira angola e oficinas de grafite à comunidade, em uma estreita viela, na entrada do Jardim Regina, em São Bernardo.
Em dez anos de funcionamento, a segunda alternativa sempre prevaleceu. Sem subvenção municipal e outros patrocínios, o programa é sinônimo de um suado trabalho de resistência. Três amigos de infância operam a sede com poucos recursos, sensibilizados com problemas sociais do bairro.

"Cansamos de esperar. Não existe investimento em cultura, lazer e esporte. Tiramos do próprio bolso para fazer as coisas acontecerem", aponta o artista Daniel Melim, que ensina pintura às terças-feiras, desde o ano passado, e faz intervenções em muros da comunidade há cerca de quatro anos.
Exercitar a solidariedade entre as crianças e os adolescentes foi o meio encontrado para sustentar esse projeto independente. O pedido é este: cada aluno ampara outro. "Ele ajuda com um uniforme de capoeira, acompanha o interesse do colega na escola", exemplifica Preto.

Com ou sem apoio, o trabalho frutifica. Mas se houvesse algum patrocínio, o projeto certamente seria expandido. "Gostaríamos de oferecer auxílio psicológico às famílias, lanches para os alunos no encerramento das aulas, além de contar com um espaço mais adequado", enumera Melim. Hoje, a sede mede cerca de 4m x 6m.
Outra proposta era montar uma lan house. O grupo, inclusive, já recebeu a doação de três computadores, mas a comunidade ainda não tem acesso aos equipamentos por falta de espaço na sede. "Se a gente colocasse as baias aqui, onde as crianças dançariam capoeira?", pergunta Preto, que ensina a arte com o aluno ‘aspirante'', Vanderlei Viana.

No bairro, onde há indícios de tráfico de drogas, as crianças têm outras referências. "Antes, era uma desordem. Todos gostavam de gritar, bater. Eu ficava indignado. Hoje em dia, as crianças não aprontam mais", lembra Preto. Algumas sonham em ser artistas e muitos se espelham em Fábio, Vanderlei e Daniel.

Cores humanizam bairros
Quem percorre as vielas do Jardim Regina e do Jardim Limpão, em São Bernardo, logo percebe que os bairros são habitados por artistas. Paredes recebem imagens de Daniel Melim com a ajuda de crianças e adolescentes, que aprendem técnicas de desenho, pintura e colagem durante as oficinas semanais.
A intervenção no morro é feita aos poucos, aos fins de semana, desde 2006. Nessa época, já faziam algumas pinturas, ricas em geometria, com a aplicação do grafite, em fachadas. Era uma forma de humanizar os bairros.

O artista ficava satisfeito com a ação esporádica. Já mostrava como usar o spray ou preencher o espaço. Mas, no ano passado, sentiu a necessidade de passar mais conteúdo para ‘molecada'', como chama seus alunos. "Agora, quando vão para o muro, já têm conhecimento de cor e composição."

Todo material é arcado por Melim. Latas de tinta, pincéis, sprays coloridos e estênceis fazem a alegria da comunidade. "Uns gostam mais de desenhar nas oficinas, outros não veem a hora de ir para o muro", explica. Esse é o caso de Mateus Henrique Sousa, 10 anos, que ajudou a pintar a fachada da sede no fim do ano passado. "Eu já desenhava na escola. Uns amigos me convidaram para participar das oficinas. E eu estou gostando", conta o garoto, que garante não perder um dia de aula.

Hoje, cerca de dez moradores frequentam, com assiduidade, as oficinas. Sempre atencioso, Daniel é o tipo de professor que faz referência a obras de Picasso e Van Gogh, explica quantas vezes for necessário e não perde a oportunidade de elogiar.
Melim assina exposições no País e no Exterior - está em cartaz na galeria Choque Cultural, em São Paulo, com a mostra Dentro da Tela. E sempre reserva tempo para projetos sociais.

Aprendizado além da capoeira
Mais de 500 moradores já treinaram capoeira angola com a equipe do professor Fábio Mendonça, conhecido como Preto. "Quem fez aula com a gente tem hoje filho aprendendo na sede. A molecada tem necessidade de se expressar", conta.
Crianças e jovens da comunidade aprendem como dançar e tocar percussão afro, além de construir os próprios instrumentos. Nas oficinas, Preto ainda conta com o suporte de Vanderlei Viana. "Comecei como aluno. Hoje, sou educador", explica ele, que passa conhecimentos sobre a arte e ajuda a conter a bagunça durante as aulas.
Segundo Fábio, o projeto não foi idealizado. Aconteceu. Enquanto jogava capoeira na rua, há cerca de dez anos, foi observado por uma moradora, que lhe fez uma sugestão: que tal começar a dar aulas? Foi a partir daí que apostou na arte como elemento de integração.

NO GINGADO - Se é aula de produzir um determinado instrumento, há pelo menos um cuidado: verificar se todos têm material. As primeiras peças pertencem a quem as produziu. As outras ficam na sede porque mais crianças podem querer tocar.
Todo aprendizado tem mão dupla. Com a experiência do trabalho voluntário, Fábio acredita que tem muito retorno. "Eu só aprendo. As crianças me ensinam a ser gente, a perceber que cada um tem uma necessidade, a olhar nos olhos das pessoas", enumera.
O artista ainda sente como se já tivesse filhos. "No dia do meu aniversário, ganhei tantos presentes de R$ 1,99 que pensei em abrir uma lojinha", brinca. E, como a um pai, todos o cumprimentam com um beijo no rosto.

Sara SaarDo Diário do Grande ABC
domingo, 7 de março de 2010 7:05
Back to Top